Prezados,
no dia 20.11.2013 o TJRS julgou uma apelação cível na qual o Ministério Público figura como apelante (veja abaixo). Trata-se da discussão acerca do direito de um idoso a recusar a amputação de um membro necrosado, direito este que foi interpretado como constitucional, supostamente por constituir ortotanásia, através do desejo manifestado pelo paciente por um testamento vital, em conformidade com a resolução 1995/2013.
Estamos diante do primeiro acórdão (pelo menos que eu tenho notícia) que analisou, diante do caso concreto, o testamento vital. Todavia, infelizmente, o que se percebe diante da leitura apurada da decisão é que o paciente fez manifestação de recusa de tratamento e não um testamento vital, uma vez que ele não estava em situação de fim de vida.
Ademais, o diagnóstico de depressão pode, como adotado em vários países, ser limitador da capacidade do paciente.
É uma importante decisão. Precisamos, entretanto, uniformizar conceitos e evitar que o Poder Judiciário adote o desconhecimento que tomou conta da nossa doutrina e comece a nomear toda manifestação de recusa de tratamento de testamento vital.
Abraço,
Luciana.
APELAÇÃO
CÍVEL. ASSISTÊNCIA À SAÚDE. BIODIREITO. ORTOTANÁSIA. TESTAMENTO VITAL.
1.
Se o paciente, com o pé esquerdo necrosado, se nega à amputação, preferindo,
conforme laudo psicológico, morrer para “aliviar o sofrimento”; e, conforme
laudo psiquiátrico, se encontra em pleno gozo das faculdades mentais, o Estado
não pode invadir seu corpo e realizar a cirurgia mutilatória contra a sua
vontade, mesmo que seja pelo motivo nobre de salvar sua vida.
2.
O caso se insere no denominado biodireito,
na dimensão da ortotanásia, que vem a
ser a morte no seu devido tempo, sem prolongar a vida por meios artificiais, ou
além do que seria o processo natural.
3.
O
direito à vida garantido no art. 5º, caput,
deve ser combinado com o princípio da dignidade da pessoa, previsto no art. 2º,
III, ambos da CF, isto é, vida com dignidade ou razoável qualidade. A
Constituição institui o direito à vida,
não o dever à vida, razão pela qual
não se admite que o paciente seja obrigado a se submeter a tratamento ou
cirurgia, máxime quando mutilatória. Ademais, na esfera infraconstitucional, o
fato de o art. 15 do CC proibir tratamento médico ou intervenção cirúrgica
quando há risco de vida, não quer dizer que, não havendo risco, ou mesmo quando
para salvar a vida, a pessoa pode ser constrangida a tal.
4. Nas circunstâncias, a fim de preservar
o médico de eventual acusação de terceiros, tem-se que o paciente, pelo quanto
consta nos autos, fez o denominado testamento
vital, que figura na Resolução nº 1995/2012, do Conselho Federal de Medicina.
5. Apelação desprovida.
Apelação Cível
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Primeira Câmara
Cível
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Nº 70054988266 (N° CNJ: 0223453-79.2013.8.21.7000)
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Comarca de
Viamão
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MINISTERIO PUBLICO
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APELANTE
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JOAO CARLOS FERREIRA
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APELADO
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ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos.
Acordam os Desembargadores integrantes da Primeira
Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, em desprover a
apelação.
Custas na forma da lei.
Participaram do julgamento, além do signatário
(Presidente), os eminentes Senhores Des. Carlos Roberto Lofego Caníbal e Des. Luiz
Felipe Silveira Difini.
Porto Alegre, 20 de novembro de 2013.
DES. IRINEU MARIANI,
Relator.
RELATÓRIO
Des. Irineu Mariani (RELATOR)
O MINISTÉRIO PÚBLICO ingressa com pedido de alvará
judicial para suprimento da vontade do idoso JOÃO CARLOS FERREIRA, “usuário-morador do Hospital Colônia Itapuã e ex-hanseniano”
(fl. 2).
Sustenta que o idoso está em processo de necrose do pé
esquerdo, resultante de uma lesão, desde novembro de 2011, que vem se
agravando, inclusive com emagrecimento progressivo e anemia acentuada
resultante do direcionamento da corrente sanguínea para a lesão tumoral, motivo
pelo qual necessita amputar o membro inferior, sob pena de morte por infecção
generalizada. Ressalta que o “paciente está em estado depressivo,
conforme laudo da psicóloga Heláde Schroeder, que ainda atesta que o paciente
está desistindo da própria vida vendo a morte como alívio do sofrimento.”
(fl. 2). Ressalva que, conforme laudos médicos, o idoso não apresenta sinais de
demência. Assim, pugna pelo deferimento do pedido para “suprir a vontade do
idoso JOÃO CARLOS FERREIRA, RG 5007145898, expedindo-se alvará ao Hospital
Colônia Itapuã autorizando ampute o pé esquerdo do paciente.” (fl.
3).
O juízo singular indefere o pedido, argumentando que “não se trata de doença recente e o paciente é pessoa capaz, tendo livre
escolha para agir e, provavelmente, consciência das eventuais consequências,
não cabendo ao Estado tal interferência, ainda que porventura possa vir a
ocorrer o resultado morte.” (fl. 16).
O Ministério Público apresenta apelação (fls. 17-9),
enfatizando que o idoso corre risco de morrer em virtude de infecção
generalizada caso não realize a amputação. Advoga que ele não tem condições
psíquicas de recusar validamente o procedimento cirúrgico, porquanto apresenta
um quadro depressivo, conforme os laudos médicos juntados aos autos. Reforça a
ideia de que “deve-se reconhecer a prevalência do direito à vida,
indisponível e inviolável em face da Constituição Federal, a justificar a realização
do procedimento cirúrgico, mesmo que se contraponha ao desejo do paciente, uma
vez que reflete o próprio direito à sua sobrevivência frente à doença grave que
enfrenta, bem porque não possui ele condições psicológicas de decidir,
validamente, não realizar a cirurgia, ante o quadro depressivo que o acomete.”
(fl. 18v.). Assim, pede o provimento (fls. 17-9).
O Ministério Público junta documentos a fim de suprir a
carência documental suscitada pelo magistrado na sentença (fls. 21-8).
A douta Procuradoria de Justiça opina pelo
desprovimento do recurso (fls. 31-4).
É o relatório.
VOTOS
Des. Irineu Mariani (RELATOR)
Eminentes colegas, temos um caso bastante singular. O Sr. João Carlos
Ferreira, nascido em 4-5-1934, portanto, com 79 anos, usuário-morador do
Hospital Colônia Itapuã e ex-hanseniano, está com um processo de necrose no pé
esquerdo e, segundo o médico, a solução é amputá-lo, sob pena de o processo
infeccioso avançar e provocar a morte.
Considerando que, conforme
laudo psicológico, o paciente se opõe à amputação e “está desistindo da
própria vida, vendo a morte como alívio do sofrimento”; considerando que, conforme laudo
psiquiátrico, “continua lúcido, sem sinais de demência”, o
médico buscou auxílio do Ministério Público, no sentido de fazer a cirurgia
mutilatória mediante autorização judicial, a fim de salvar a vida do paciente;
e considerando que o pedido do
Ministério Público foi indeferido de plano, vem a apelação.
Com efeito, dentro do que se está a desingnar de Biodireito, temos:
(a) a eutanásia, também chamada “boa morte”, “morte apropriada”, suicídio
assistido, crime caritativo, morte piedosa, assim entendida aquela em que o
paciente, sabendo que a doença é incurável ou ostenta situação que o levará a
não ter condições mínimas de uma vida digna, solicita ao médico ou a terceiro
que o mate, com o objetivo de evitar os sofrimentos e dores físicas e
psicológicas que lhe trarão com o desenvolvimento da moléstia, o que, embora
todas as discussões a favor e contra, a legislação brasileira não permite;
(b) a ortotanásia, que vem a ser a morte no seu devido tempo, sem
prolongar o sofrimento, morte sem prolongar a vida por meios artificiais, ou
além do que seria o processo natural, o que vem sendo entendido como possível
pela legislação brasileira, quer dizer, o médico não é obrigado a submeter o
paciente à distanásia para tentar
salvar a vida;
(c) a distanásia, também chamada “obstinação terapêutica” (L’archement thérapeutique) e “futilidade
médica” (medical futility), pela qual
tudo deve ser feito, mesmo que o tratamento seja inútil e cause sofrimento
atroz ao paciente terminal, quer dizer, na realidade não objetiva prolongar a
vida, mas o processo de morte, e por isso também é chamada de “morte lenta”,
motivo pelo qual admite-se que o médico suspenda procedimentos e tratamentos,
garantindo apenas os cuidados necessários para aliviar as dores, na perspectiva
de uma assistência integral, respeitada a vontade do paciente ou de seu
representante legal.
Pois bem.
O caso sub judice se insere na
dimensão da ortotanásia. Em suma, se
o paciente se recusa ao ato cirúrgico mutilatório, o Estado não pode invadir
essa esfera e procedê-lo contra a sua vontade, mesmo que o seja com o objetivo
nobre de salvar sua vida.
Com efeito, o Papa João Paulo II, ao promulgar, em 1995, a Encíclica Evangelium Vitae, condenou apenas a
eutanásia e a distanásia, silenciando quanto à ortotanásia. Isso é interpretado
como implícita a sua admissão pela Igreja Católica, que é, como sabemos,
bastante ortodoxa nos temas relativos à defesa da vida.
Sem adentrar na disciplina dada a esses temas pela Resolução nº
1.805/2006, do Conselho Federal de Medicina, e ficando no âmbito constitucional
e infraconstitucional, pode-se dizer que existe razoável doutrina especializada
no sentido da previsão da ortotanásia,
por exemplo, o Artigo ANÁLISE CONSTITUCIONAL DA
ORTOTANÁSIA: O DIREITO DE MORRER COM DIGNIDADE, de autoria do Dr.
Thiago Vieira Bomtempo, disponóvel no seu portal jurídico na Internet.
Resumindo, o direito à vida
garantido no art. 5º, caput, deve ser
combinado com o princípio da dignidade
da pessoa, previsto no art. 2º, III, ambos da CF, isto é, vida com
dignidade ou razoável qualidade. Em relação ao seu titular, o direito à vida
não é absoluto. Noutras palavras, não existe a obrigação constitucional de
viver, haja vista que, por exemplo, o Código Penal não criminaliza a tentativa
de suicídio. Ninguém pode ser processado criminalmente por tentar suicídio.
Nessa ordem de idéias, a Constituição institui o direito à vida, não o dever
à vida, razão pela qual não se admite que o paciente seja obrigado a se
submeter a cirurgia ou tratamento.
Conforme o Artigo acima citado, o entendimento de que “não se admite que o paciente seja obrigado a se submeter a tratamento,
embora haja o dever estatal de que os melhores tratamentos médicos estejam à
sua disposição”, é também defendido por Roxana Cardoso Brasileiro
Borges. Acrescenta que o desrespeito pelo médico à liberdade do paciente,
devidamente esclarecido, em relação à recusa
do tratamento, “pode caracterizar cárcere privado,
constrangimento ilegal e até lesões corporais, conforme o caso. O paciente tem
o direito de, após ter recebido a informação do médico e ter esclarecidas as
perspectivas da terapia, decidir se vai se submeter ao tratamento ou, tendo
esse já iniciado, se vai continuar com ele.”
No final do Artigo, Nota nº 8, o Dr. Thiago Vieira Bomtempo, reproduz
mais uma passagem do entendimento da Drª Roxana Borges, a qual reproduzo: “O consentimento esclarecido é um direito do paciente, direito à informação,
garantia constitucional, prevista no art. 5º, XIV, da Constituição, e no Cap.
IV, art. 22, do Código de Ética Médica. Segundo Roxana Borges, o paciente tem o
direito de, após ter recebido a informação do médico e ter esclarecidas as
perspectivas da terapia, decidir se vai se submeter ao tratamento ou, já o
tendo iniciado, se vai continuar com ele. Estas informações devem ser prévias,
completas e em linguagem acessível, ou seja, em termos que sejam compreensíveis
para o paciente, sobre o tratamento, a terapia empregada, os resultados
esperados, o risco e o sofrimento a que se pode submeter o paciente. Esclarece
a autora, ainda, que para a segurança do médico, o consentimento deve ser
escrito.”
Por coincidência, eminentes colegas, a Revista SUPERINTERESSANTE, nº 324, do corrente mês de outubro/2013,
publica matéria sob o título COMO SERÁ
SEU FIM? Nas páginas 83-4, fala justamente da ortotanásia e a possibilidade
de o paciente detalhar quais procedimentos médicos quer usar para prolongar a
vida, como diálise, respiradores artificiais, ressuscitação com desfibrilador,
tubo de alimentação, mas também pode deixar claro que não quer retardar sua
morte.
Tal manifestação de vontade, que vem sendo chamada de TESTAMENTO VITAL, figura na Resolução nº 1995/2012, do
Conselho Federal de Medicina, na qual consta que “Não se justifica
prolongar um sofrimento desnecessário, em detrimento à qualidade de vida do ser
humano” e prevê, então, a possibilidade de a pessoa se manifestar a
respeito, mediante três requisitos: (1)
a decisão do paciente deve ser feita antecipadamente, isto é, antes da fase
crítica; (2) o paciente deve estar
plenamente consciente; e (3) deve
constar que a sua manifestação de vontade deve prevalecer sobre a vontade dos
parentes e dos médicos que o assistem.
Ademais, no âmbito infraconstitucional, especificamente o Código Civil,
dispõe o art. 15: “Ninguém pode ser constrangido a
submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica.”
O fato de o dispositivo proibir quando há risco de vida, não quer dizer
que, não havendo, a pessoa pode ser constrangida a tratamento ou intervenção
cirúrgica, máxime quando mutilatória de seu organismo.
Por fim, se por um lado muito louvável a preocupação da ilustre Promotora
de Justiça que subscreve a inicial e o recurso, bem assim do profissional da
medicina que assiste o autor, por outro não se pode desconsiderar o trauma da
amputação, causando-lhe sofrimento moral, de sorte que a sua opção não é
desmotivada.
Apenas que, eminentes colegas, nas circunstâncias, a fim de preservar o
médico de eventual acusação de terceiros, tenho que o paciente, pelo quanto
consta nos autos, fez o seu testamento vital no sentido de não se submeter à
amputação, com os riscos inerentes à recusa.
Nesses termos, e com o registro final, desprovejo a apelação.
Des. Carlos Roberto Lofego Caníbal (REVISOR) - De
acordo com o(a) Relator(a).
Des. Luiz Felipe Silveira Difini - De
acordo com o(a) Relator(a).
DES. IRINEU MARIANI - Presidente - Apelação Cível nº
70054988266, Comarca de Viamão: "À UNANIMIDADE, DESPROVERAM."
Julgador(a) de 1º Grau: GIULIANO VIERO GIULIATO